Alfabetização em anos finais do ensino Fundamental: desafios e possibilidades

TEXTO Por: victor santos

Especialistas e educadores ajudam a entender por que essa situação ocorre e os caminhos para lidar com essa complexa tarefa

No ano de 2011, o professor Antonio Oziêlton de Brito Sousa dava aulas de Língua Portuguesa na Escola de Ensino Fundamental Odilon de Souza Brilhante, no distrito rural de Curupira, em Ocara (CE). Nesse mesmo espaço em que ele havia estudado, quando se viu na posição de educador, encontrou uma adversidade: alunos do 8º ano, mesmo já no segundo ciclo do Fundamental, não estavam plenamente alfabetizados. 

“Era um contexto de escassez de materiais e mesmo de propostas pedagógicas mais assertivas”, relembra o educador. “Então, busquei desenvolver um trabalho com o gênero textual ‘memórias’ – algo que todo mundo tem. As memórias dos estudantes foram um gancho para a produção coletiva de textos, visando trabalhar habilidades não consolidadas, para que pudessem concluir os Anos Finais com a devida alfabetização e letramento”. O sucesso da iniciativa, além de percebido no próprio dia a dia escolar, levou o professor a ser contemplado com o prêmio Educador Nota 10 de 2012 (mais detalhes sobre o projeto aqui). 

Passados mais de dez anos, e com uma pandemia que impactou fortemente a Educação pública brasileira, professores de várias partes do Brasil ainda enfrentam o mesmo desafio de Oziêlton. Por isso, NOVA ESCOLA foi em busca de entender esse complexo cenário que envolve a alfabetização nos Anos Finais, contextualizando o tema e ouvindo de especialistas e educadores quais as possíveis soluções.

Alfabetização e letramento

Silvia Colello, professora-sênior vinculada ao programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora na área de alfabetização e letramento, explica que “durante muito tempo predominou uma lógica dicotômica: ou você é alfabetizado ou não é. Então, tínhamos iniciativas como o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) [criado em 1967 e encerrado definitivamente em 1991], com o objetivo de ensinar o aluno a escrever seu nome e, assim, poder tirar documentos e votar, por exemplo.” 

Porém, continua a especialista, a partir dos anos 1990, com a consolidação da abertura política do país, as novas tecnologias e mesmo as necessidades do mercado de trabalho, ficou claro que a noção de alfabetização precisava ser muito mais ampla. É quando emerge o conceito de letramento, um termo recente que só foi dicionarizado em 2001. 

Silvia aponta que esses conceitos de alfabetização e letramento envolvem muitas discussões entre pensadores da Educação, mas que, tomando a autora Magda Soares como referência, podemos sintetizar que “alfabetização é aprender ou ensinar o sistema da escrita, enquanto letramento é usar os conhecimentos sobre a língua para participar das atividades de leitura e escrita na sociedade, de forma a alcançar um novo estado ou condição”. 

“Por isso, segundo a autora, tão importante quanto conhecer as normas e regras da escrita é você se tornar um usuário, alguém que cultiva e exerce as práticas letradas do seu tempo”, observa Silvia. “É nesse ponto que surgem perspectivas como a do analfabetismo funcional, aquele indivíduo que, às vezes, passou pela escola, até aprendeu a língua escrita, mas não se tornou um usuário dela. É como uma pessoa que sabe decodificar uma receita culinária, mas não sabe executá-la”, compara a pesquisadora. 

Analfabetismo funcional e o papel dos Anos Finais

Desde o início dos anos 2000, o Brasil conta com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), pesquisa que auxilia na identificação dessas lacunas. Como explica Ana Lucia Lima, coordenadora do estudo desde a sua primeira versão e que prepara a próxima para aplicação em 2022, o índice já desconstrói esse caráter ‘binário’ da alfabetização, agrupando a população de 15 a 64 anos em cinco níveis: analfabeto, rudimentar, elementar, intermediário e proficiente (veja mais sobre as definições de cada nível aqui). Para fins de análise, o Inaf considera três níveis: analfabeto funcional, elementar e alfabetismo consolidado. 

Pelos dados mais recentes, de 2018, apenas 12% dos brasileiros se encontram na posição de leitores plenos e consolidados e 29% são analfabetos funcionais. “Essa cifra já caiu bastante, porque estava em 39% no início dos anos 2000, mas ainda assim é muita gente, é algo assustador”, diz Ana Lucia. Entre as diversas análises que esses dados do Inaf possibilitam, uma delas vai ao encontro do problema que esta reportagem busca entender: há quatro anos, a própria pesquisadora deu uma entrevista para NOVA ESCOLA salientando que o ponto mais crítico do analfabetismo funcional estava nos Anos Finais do Ensino Fundamental. 

“Essa etapa é, de fato, um detonador de desigualdades”, analisa Ana Lucia. “Quando realizamos as entrevistas para esse estudo, perguntamos a escolaridade que as pessoas cumpriram. Nessa perspectiva, vemos que, para os alfabetizados no nível rudimentar ou intermediário, praticamente não faz diferença eles terem Ensino Médio completo ou não. Assim, ou funcionou a aquisição de habilidades e letramento nos Anos Finais do Fundamental e aí ele vai adiante ou simplesmente não funcionou e ele não vai avançar nas suas habilidades de letramento ou no seu próprio aprendizado em etapas posteriores, como o Ensino Médio ou mesmo o Ensino Superior.”

As várias dimensões da questão

Os relatos apresentados ilustram a problemática que envolve a alfabetização nos Anos Finais do Fundamental. Se, por um lado, ela é decisiva para os caminhos futuros dos estudantes, por outro, os professores seguem se deparando com alunos que não apresentam o letramento esperado. Surge então um questionamento quase inevitável: por que esses alunos avançaram na escolarização? 

“Trata-se de um problema complexo e com muitas dimensões, e uma delas é psicossocial”, discorre Silvia Colello. “Chega uma hora que não tem mais como segurar um aluno na classe de 5º ano, se ele reprovou dois anos. Não dá para deixar esses alunos na mesma sala, a diferença é brutal. Do ponto de vista psicossocial, a convivência é complexa.” 

A pesquisadora segue listando mais alguns aspectos que cercam essa questão. “Do ponto de vista pessoal, o aluno corre o risco de incorporar a ideia de que não é capaz de aprender. No plano social, ele vai conviver com alguns estigmas e pode até ter problemas de relacionamento dentro da escola, se colocando ou sendo visto numa posição de inferioridade.” 

“Além disso, a língua escrita não pode ser vista como um pré-requisito: é discutível essa crença de que quem não sabe ler e escrever não é capaz de aprender nada mais”, acrescenta Silvia. Ela menciona ainda um outro agravante. “Os professores dos Anos Finais vêm de cursos como Letras ou licenciaturas, e não da Pedagogia. Por isso, muitos afirmam que não sabem alfabetizar. Temos que entender a posição e mesmo a frustração desses educadores, que se veem diante de uma tarefa para a qual não foram preparados.” 

Avaliações diagnósticas e escuta sensível para conhecer a realidade dos alunos 

“Não são poucas as dificuldades e desafios de alfabetizar nesse ciclo”, comenta Vanusa Benicio Lopes, professora de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e competências socioemocionais do 8º e 9º ano na Escola de Ensino Fundamental Luís Cândido de Oliveira, também em Ocara (CE). “Muitas pessoas podem achar que ‘se não aprenderam até aqui, vamos passar para a frente’, mas não é assim: temos que correr atrás de metodologias e estratégias que deem certo.” 

Além da experiência de sala de aula e de formadora de professores, Vanusa possui doutorado na área de Linguística Aplicada, com pesquisas em letramento literário e mediação de leituras, e realiza trabalhos com círculos de leitura na periferia de Fortaleza (CE), em locais como associações de bairro e bibliotecas comunitárias. Tantas experiências, conta ela, a fizeram perceber que “alfabetizar é pensar no nosso aluno como um todo, analisar a escrita e o nível de aprendizado em que se encontra e procurar ajudá-lo de forma integral.” 

Segundo a professora, a estratégia inicial nesse contexto consiste nas avaliações diagnósticas. “Podemos pegar competências e habilidades da BNCC que são esperadas para cada um desses anos (6º ao 9º) e elaborar atividades para identificar, por exemplo, em qual nível o aluno se encontra em relação às habilidades de oralidade, escrita, análise linguística e leitura.” 

Com uma bagagem de 15 anos de atuação nos Anos Finais, doutorado em Linguística Aplicada e experiências como formador de professores e autor de materiais didáticos, e agora dando aulas no Ensino Médio, o professor Oziêlton, que aparece na abertura desta reportagem, complementa as palavras de Vanusa. “Primeiro, deve-se conhecer a realidade da turma, pelas diagnósticas e pela escuta sensível dos estudantes que não têm a sua alfabetização consolidada, entendendo gostos, anseios e necessidades”, explica. “Em seguida, é importante compreender que as habilidades têm gradações. Às vezes, o estudante não é capaz de analisar determinado conteúdo, mas consegue analisar um outro.” 

Assim, continua o educador, “a diagnóstica serve de base para um processo posterior de avaliação formativa, com duração de um ano letivo”. Trata-se, de acordo com ele, de um plano de trabalho com metas claras que entende o que os alunos já sabem e o que podem aprender até o fim do ano, sempre em processos gradativos. “Se focarmos em objetivos muito amplos, corremos o risco de não enxergar os pequenos avanços que acontecem no dia a dia da sala de aula.”

Diferentes caminhos e estratégias

A partir daí, os professores afirmam que é o momento de lançar mão das mais variadas possibilidades. “Muito se fala em agrupamentos produtivos nos Anos Iniciais, mas isso também é possível nos Finais”, destaca Vanusa. “Então podemos pensar em momentos de produção coletiva, com um ajudando o outro, lidando, por exemplo, com questões como parágrafo e referenciação.” 

Oziêlton salienta que é interessante investir em formas de aprendizagem diversificadas e nas metodologias ativas, porque ajudam a construir a proximidade e a confiança docente-estudante. A rotação por estações e a sala de aula invertida sempre fizeram muita diferença nas minhas aulas”, reforça. “A própria BNCC já fala em multimodalidade, então o planejamento do professor pode incluir, por exemplo, músicas. Pensar em um ‘baladão’, ouvindo ritmos como o ‘piseiro’ em sala de aula, e depois trabalhar um objeto do conhecimento específico a partir dessas músicas”, sugere. “Ou então pensar em uma produção de textos multimodais como os memes, lidando com imagem, poucas palavras e talvez algum aplicativo apoiando a produção. O foco é fazer com que os alunos percebam que sempre vão ter conteúdos disponíveis, por meio dos quais eles podem aprender algo.” 

Por fim, construir momentos diversos de leitura, na sala de aula e fora dela, são caminhos bastante efetivos segundo ambos os educadores. “O letramento literário é uma estratégia interessante, porque desperta a curiosidade e instiga os alunos a querer aprender mais”, relata Vanusa. Ela indica dois livros que podem ajudar os professores a estruturar esse processo, ambos do autor Rildo Cosson: Círculos de Leitura e Letramento Literário e Letramento Literário: Teoria e Prática

Nesse contexto, a mediação e os círculos de leitura se tornam elementos cruciais. “A mediação articula vários critérios. Envolve, primeiramente, conhecer o seu público, que no caso são os alunos dos Anos Finais, e convencê-los a embarcar na experiência”, explica a professora. “Em seguida, entram critérios como contexto (em que situação a leitura está sendo realizada? É possível ir além das salas de aula e mesmo dos muros da escola?), objetivos (o que quero alcançar com essa leitura?) e possibilidades (quais estratégias utilizar? Como não tornar esse momento cansativo?)”. 

Considerando essas e outras possibilidades, o professor Oziêlton ressalta que duas questões são decisivas na hora de pensar nesses estudantes com alfabetização não consolidada: reflexões sobre o contexto pandêmico atual e capacitações contínuas dos professores. 

“Temos no país um déficit histórico de Educação com as classes mais desfavorecidas, e a pandemia escancarou as desigualdades. Então, é preciso pensar em formações específicas para professores do 6º ao 9º ano, que os auxiliem a delinear estratégias e planos de trabalho para essas turmas cada vez mais heterogêneas que eles estão recebendo”, sinaliza o educador. “E esse processo formativo precisa garantir uma reflexão sobre a realidade educacional em que eles estão inseridos: é importante situar o professor em sua sala de aula real e não em uma sala de aula ideal.”

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