O trabalho pedagógico com áreas do conhecimento

Uma professora do 3º ano do Ensino Fundamental, com o objetivo de entender o passado de forma significativa e personalizada e, ainda, de situar diferentes tempos na relação com a diversidade regional e cultural, estimula seus alunos a entrevistarem pais, avós e bisavós para conhecer suas origens – de onde vieram, seus modos de vida e práticas sociais desde a infância. 

A atividade, configurada como um efetivo trabalho de investigação, garantiu um levantamento de dados, que passou a ser trabalhado pelo grupo. Para esses pequenos pesquisadores, a construção de árvores genealógicas e de linhas do tempo, a degustação de comidas típicas e a organização de uma exposição com músicas de época, documentos, fotos, vestimentas, brinquedos e objetos antigos foi a base para a problematização de costumes e valores, além da sistematização de conhecimentos.

PROJETOS DE PESQUISA: SEU USO E BENEFÍCIOS

No Ensino Médio, diversas iniciativas de Iniciação Científica desenvolveram trabalhos interdisciplinares sob a forma de projetos de pesquisa e resolução de problemas em diferentes esferas: saúde, arte e cultura; cidadania; violência e justiça social; ciência e tecnologia; meio ambiente e sustentabilidade; organização social e legado histórico. 

Superando limites das tradicionais atividades escolares, os projetos configuraram-se como efetivas práticas de trabalho cooperativo, ampliação dos referenciais de estudo, construção e compartilhamento de conhecimentos, vivências de posturas ou valores e constituição de posicionamentos críticos. O resultado desse esforço foi a publicação de artigos científicos em revistas acadêmicas, ao lado de renomados autores internacionais (Projeto Coepta – ver nota no final do texto).

Como surgiram essas inovadoras formas de ensinar? Quais são seus méritos, dificuldades e desafios?

DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS POR MEIO DA INTERDISCIPLINARIDADE

Embora trabalhos interdisciplinares (como os exemplos mencionados) sempre tenham existido pelas iniciativas de professores criativos, desde a publicação da BNCC, eles parecem ter ganhado um novo status, já que passaram a ser formalmente propostos na organização curricular por áreas de conhecimento. Em cada uma delas, estão previstas o desenvolvimento de competências específicas, relacionadas a outras mais amplas previstas no projeto de formação. 

Esse princípio pedagógico nasceu da consciência sobre a necessidade de aproximar o ensino da realidade do nosso mundo. Se, historicamente, a escola se constituiu e se estruturou com base na fragmentação de disciplinas (respeitando o princípio enciclopedista de transmissão de conteúdos), a educação de hoje, em função de mudanças globais e tecnológicas ocorridas desde o final do século passado, pede a formação de um sujeito mais crítico, analítico e autônomo. 

O aluno que, no passado deveria dominar conteúdos, dá lugar ao estudante que, pela articulação inteligente e criativa de saberes, habilidades e competências, é capaz de se questionar, buscar informações, relacionar fatos, interpretar dados, construir conhecimentos, resolver problemas, criar alternativas e, conscientemente, assumir posturas. Dessa forma, o agrupamento dos conteúdos em diferentes componentes curriculares é sustentado pela concepção de sujeito ativo que, a partir da intencionalidade das práticas escolares, participa, assume e gerencia a sua própria formação.

AS POSSIBILIDADES EVOLUTIVAS DA INTERDISCIPLINARIDADE

Assim, entre os principais méritos da proposta, destacam-se as possibilidades de romper as barreiras entre a escola e o mundo, promover práticas de ensino contextualizadas, significativas e motivadoras, estimular o engajamento participativo dos estudantes, respeitar ritmos de trabalho, diversidades culturais e especificidades dos grupos, favorecer a inclusão, abrir espaço para a educação em valores e vivências afetivas, além de valorizar o protagonismo dos alunos desde os anos iniciais. 

Por essas vias, cai por terra o princípio de primeiro aprender para, um dia – em um futuro distante, usar esse conhecimento e inaugurar um ensino capaz de articular o descobrir, o usar, o criar, o aprender, o sentir e o posicionar-se. Na construção do conhecimento, trata-se de articular diferentes lentes disciplinares, aprendendo suas interconexões. Afinal, se o mundo é plural e se os fenômenos são complexos, não há como fragmentar as vias de abordagem e de compreensão.

A PROMOÇÃO DO TRABALHO INTEGRADO

Quando o princípio de ordem é lidar com a complexidade dos fenômenos, parece que os professores polivalentes dos anos iniciais – seja pelo visão global do programa a ser trabalhado, seja pelo maior conhecimento dos alunos ou, ainda, pela ampla disposição do tempo escolar – estão em melhores condições de promover um trabalho integrado. No entanto, a maior facilidade estrutural não garante a melhor efetivação dessa meta, sobretudo se eles não se dispuserem a rever concepções e práticas de ensino. 

Aliás, esse é também o principal desafio dos professores de Ensino Fundamental 2 e Médio, que devem lidar com o postulado da BNCC (um aparente paradoxo): áreas de conhecimento que se intersectam na formação do estudante, ao mesmo tempo em que preservam sua especificidade. Dado o seu caráter inovador, a legitimidade da proposta certamente esbarra com a possibilidade de execução segura e eficiente.

Uma visão mais ampla dos desafios

A esse respeito, surgem os maiores desafios dos professores, uma vez que, partindo de formações específicas, nem sempre eles se sentem à vontade para lidar com o trabalho integrado por áreas de conhecimento. Sair da zona de conforto de lecionar em um único campo é, no entanto, apenas o primeiro requisito para a superação das dificuldades. 

Para além do âmbito pessoal, a nova configuração curricular passa, necessariamente, por esferas conceituais, procedimentais e estruturais das instituições de ensino. Além de viabilizar a composição de equipes interdisciplinares capazes de propor, planejar, desenvolver e avaliar projetos integrados de ensino, é preciso reorganizar tempos, espaços e formas de intervenção escolar.

CONCLUSÃO

Essas condições de trabalho tangenciam a necessidade de sólidas formações inicial, continuada e em serviço, dadas por oportunidades de estudo, debates e troca de experiências dentro e fora da escola. Para que tantas iniciativas não se limitem à difusão de meras “receitas pedagógicas”, importa repensar a própria constituição do mundo acadêmico. 

Em outras palavras, não basta mudar o tipo de atividade em sala de aula; é preciso entender o princípio de integração de conteúdos, que incide sobre a complexidade do efetivo conhecimento. Não basta ensinar simultaneamente diferentes disciplinas, é preciso vislumbrar o papel do professor na formação de sujeitos éticos, autônomos, criativos e participativos. Não basta incorporar mudanças pedagógicas, é preciso mudar a ótica que se tem a respeito da educação, visando a constituição de jovens que, por serem capazes de viver melhor em seu mundo, fazem dele um mundo melhor.

Nota: Criado em 2018, o Projeto Coepta (http://www2.fe.usp.br/~cemoroc/page07s.html)com o objetivo de fortalecer o sentido dos trabalhos interdisciplinares e, assim, apoiar as iniciativas de Iniciação Científica para jovens estudantes, já publicou 40 artigos em seis números das renomadas revistas do Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente – CEMOrOc/FEUSP.

 

Sugestões de materiais complementares:

COLELLO, S. “As linguagens no processo de formação humana”. Aula 2 da disciplina Linguagens na Educação: conteúdos, formas e relações na escola do curso Repensando o Currículo. Faculdade de Educação da USP/Instituto Iungo, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QCqRUGL5RXM . Acesso em 15/5/2021.

COLELLO, S. “Práticas de ensino da língua escrita: entrevista com a Professora Claudia Aratangy”. Aula 8 da disciplina Alfabetização e letramento II do Curso de Pedagogia da UNIVESP, 2019. Disponível em: https://silviacolello.com.br/aula-8-praticas-de-ensino-da-lingua-escrita-entrevista-com-a-professora-claudia-aratangy/ . Acesso em 15/5/2021.

COLELLO. S. M. G. “Produzir conhecimentos na escola: significados e sentidos do projeto Coepta”. Convenit Internacional, n. 36/37. São Paulo: CEMOROC-FEUSP, mai-dez, 2021, p. 1-8. Disponível em:
http://www.hottopos.com/convenit36/17SilviaCoepta.pdf . Acesso em 15/5/2021.

COLELLO, S. “Projetos didáticos em sala de alfabetização”. Aula 7 da disciplina Alfabetização e letramento do Curso de Pedagogia II da UNIVESP, 2019. Disponível em: https://silviacolello.com.br/aula-7-projetos-didaticos-em-sala-de-alfabetizacao-entrevista-com-a-profa-elaine-gomes-vidal/. Acesso em 15/5/2021.

COLELLO, S. M. G.; LUCAS, M. A. O. F. “A reinvenção da escola: os desafios de ensinar a língua escrita”. International Studies on Law and Education, n. 27. São Paulo: CEMOROc-EDF/FEUSP/Universidade do Porto – Faculdade de Direito – Instituto Jurídico Interdisciplinar, set.-dez, 2017, p. 5-12. Disponível em:
http://www.hottopos.com/isle27/05-12ColelloLucas.pdf. Acesso em 15/2/2021.

Instituto Reúna. “BNCC comentada para Ensino Médio”. Disponível em:
https://institutoreuna.org.br/projeto/base-comentada-para-o-ensino-medio/. Acesso em 15/5/2021.

UNDIME, Notícias Undime. “MEC divulga vídeos sobre as áreas de conhecimento na BNCC”. 19/4/2018. Disponível em:
https://undime.org.br/noticia/19-04-2018-14-19-mec-divulga-videos-sobre-as-areas-de-conhecimento-da-bncc#:~:text=O%20Minist%C3%A9rio%20da%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20divulgou,ci%C3%AAncias%20humanas%20e%20ensino%20religioso.&text=O%20Minist%C3%A9rio%20da%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20divulgou,ci%C3%AAncias%20humanas%20e%20ensino%20religioso. Acesso em 15/5/2021.

Silvia M. Gasparian Colello

Pedagoga com Mestrado, Doutorado e Livre-docência pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professora Sênior da pós-graduação dessa mesma instituição. www.silviacolello.com.br.