Lingua escrita: para além do ensino uma questão de mentalidade

Tradicionalmente, a oposição entre Oriente e Ocidente tem sido um critério de distinção entre homens e culturas. Entretanto (e de modo paradoxal), o confronto entre esses dois mundos apresenta uma dimensão catártica sobre nós porque, em primeiro lugar, é possível vislumbrar, para além das diferenças, a mesma essência de ser humano e, em segundo, porque, ante ao “espelho dos antagonismos”, é inevitável que passemos a nos enxergar por um outro ângulo, evidenciando dimensões do ser nunca antes consideradas.

     Isso quer dizer que “conhecer o outro” traz a reboque a possibilidade de “conhecer-se através do outro”. Do ponto de vista educativo, o conhecimento a respeito dos outros faz parte daquilo que é essencial à aprendizagem: saber como meio de saciar a infindável curiosidade do ser humano e, assim, ampliar os horizontes da sua existência; conhecer para respeitar, compreender, analisar e, sobretudo, para estabelecer vínculos e dialogar. Menos evidente, mas não de menor importância, “conhecer-se através do outro” possibilita uma dimensão complementar (o que somos, conhecemos e fazemos em oposição àqueles supostamente diferentes).

     No confronto com o Oriente(1), a constatação das diferenças ou daquilo que nos falta permite ao educador uma ampla (re)visão de seus princípios pedagógicos, podendo considerar outros alvos e outros meios para o desenvolvimento humano a despeito das tendências (determinismos?, amarras?) da cultura na qual estamos submersos. Se é verdade que os nossos sistemas educacionais estão impregnados de valores específicos do nosso mundo, é também verdade que a escola, potencialmente, configura-se como um meio privilegiado para se pensar criticamente os rumos da educação, buscando princípios mais equilibrados para a realização do homem.

     Nessa perspectiva, o presente artigo pretende retomar a oposição Oriente-Ocidente, buscando especificamente no confronto do trinômio “cultura, educação e linguagem”, implicações e eventuais alternativas para o ensino de língua materna no Ocidente. Sem a pretensão de generalizar a inevitável diversidade nas formas de atualização lingüística ou de qualquer universo cultural, fixo a minha argumentação em tendências genericamente apontadas e reconhecidas por diversos autores.

     Antes disso, porém, importa precisar os pressupostos básicos deste ensaio, a saber, a concepção de linguagem, suas implicações educativas e a constatação de alarmantes tendências ocidentais na produção da escrita, aspecto este que motiva a busca de alternativas à luz de outros valores culturais.

1. Linguagem: do potencial educativo ao prejuízo das produções escritas

     Tomar a linguagem como tema de estudo ou alvo educativo requer a consideração de seus três eixos fundamentais (Geraldi, 1993): a língua, a fala (ou escrita) e a interlocução. Enquanto legado histórico e cultural, a língua apresenta-se como um sistema de regras e normas instituídas, sem as quais ela perde significado. Entretanto, sua existência está vinculada à atualização pela fala (ou pela escrita) em processos eminentemente criativos e contextualizados. Longe de ser um sistema restrito e determinado, a língua prevê a (re)construção de sentidos a partir do referencial disponível e nunca totalmente estabelecido. A negociação de significados é permanentemente conquistada nos processos interlocutivos, entendidos não como mecanismos artesanais de elaboração pessoal em acidentes momentâneos de expressão, mas como formas de expressão e de intercâmbio que, situadas no bojo dos significados históricos e sócio-culturais, constroem o universo discursivo. O falante, por sua vez, integra-se em uma dimensão potencialmente ativa, que, pelo dizer, acaba também completando-se, construindo-se e transformando-se. É esta a dimensão constitutiva da linguagem que, inegavelmente, lhe confere o potencial educativo.

     O tema da aprendizagem lingüística, tal como é concebido no âmbito do presente trabalho, ultrapassa, portanto, o alvo específico de assimilar as regras do sistema e aplicá-las em contextos estritamente funcionais de fala ou de escrita. Considerando a dimensão ampla da língua, não se trata de dominá-la para tornar-se seu usuário. Mais que isso, é preciso entender a língua como instrumento a serviço do homem. Refiro-me ao rol de experiências lingüísticas (incluindo as situações institucionais de ensino) que ampliam as possibilidades de expressão e de comunicação, incrementam o uso da língua nas suas diversas funções ou objetivos, determinam modos de inserção social, interferem na formação de mentalidades e influem na organização do pensamento, favorecendo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (tipicamente humanas). Mais do que um recurso técnico, o efetivo aprendizado lingüístico possibilita o acesso ao uso inteligente da língua e à “aventura da comunicação”, requisitos indispensáveis para a emancipação do homem e para a convivência democrática. Em síntese, fazer da alfabetização um meio para o ingresso diferenciado em nossas sociedades representa o salto qualitativo entre a “escrita do dizer” e a “escrita do transformar”(2), um dos maiores desafios a ser enfrentado pelos educadores.

     Infelizmente, o potencial lingüístico com todas as suas desejáveis implicações educativas está longe de ser uma realidade para a maioria da população. No Ocidente vivemos a condição paradoxal cuja modernização das possibilidades comunicativas, a sofisticação dos recursos tecnológicos e o encurtamento das distâncias convivem com o progresso da incultura, da marginalidade e do isolamento de grupos humanos em movimentos de progressiva restrição lingüística(3).

     Durante muito tempo, a explicação para tal realidade limitava-se às estatísticas de evasão escolar ou aos índices de analfabetismo. Hoje, percebemos com muita clareza de que se trata de um risco que atinge também aqueles que permanecem na escola. Nesse sentido, muitos são as entidades, educadores e pesquisadores a denunciar o baixo nível de leitura da população, a dificuldade dos jovens e adultos em produzir textos, interpretá-los e sobretudo em formar juízos críticos a seu respeito.

     Em estudo recentemente realizado com crianças de 6 a 12 anos, alunos de escola pública em São Paulo (Colello, 1987), tive a oportunidade de constatar a precocidade dessas tendências, que, desde muito cedo, condicionam determinados usos da escrita pela prioridade da forma sobre o conteúdo, do objetivo sobre o pessoal, do racional sobre o poético, do funcional sobre o expressivo, do pré-estabelecido sobre o criativo, do determinado sobre o crítico, do descritivo sobre o dissertativo, do estático sobre o dinâmico, do real sobre a fantasia, do imediato sobre o permanente e do artificial sobre o autêntico. O resultado disso se faz sentir em produções escritas pouco criativas, insípidas, repletas de clichês, vazias de conteúdo ou de emoção, tais como as de seus colegas mais velhos que chegam às portas da universidade(4). Assim, as produções escritas, mesmo nos casos em que se garantam a correção ortográfica, gramatical, sintática e lógica, parecem apenas cumprir a tarefa de “marcar o preto no branco”, isto é, de preencher o espaço do papel, apresentando dados, sem necessariamente usufruir os benefícios dessa possibilidade.

     Não se pode negar que a dificuldade na produção da escrita é, em grande parte, conseqüência das concepções e metodologias de ensino assim como das práticas escolares que insistem nos padrões de correção e na prioridade de usos específicos da língua (considerados melhores, mais apropriados e legítimos) em detrimento do significado, da vontade de dizer e do equilíbrio das possibilidades de expressão. Em geral, seja por intermédio dos livros didáticos, seja pelo próprio modelo instituído como parâmetro ideal (eventualmente, o único!) de produção, o que predomina na escola é o texto informativo, tão mais valorizado quanto maior o número de dados veiculados, a objetividade da apresentação e o teor supostamente científico. A informação pela escrita consagrou-se como elemento tão indispensável na transmissão de conhecimentos, que muitos não mais percebem que o texto pode ser também objeto de fruição e de expressão informal. Sem desmerecer a importância dos textos informativos, o que está em questão é a super valorização deles em face de outras formas igualmente legítimas de dizer pela via escrita.

     A pouca ênfase atribuída às diferentes possibilidades textuais (como poemas, contos, cartas, exercícios de ficção, produções humorísticas, teatrais e escritas de manifestação pessoal dos sentimentos, fantasias, emoções, opiniões e defesas de idéias) não é sequer percebida, nem muito menos lamentada. Em primeiro lugar, porque elas realmente não são consideradas relevantes para o processo de conhecimento, a superação das etapas escolares, o ingresso nas universidades, o sucesso no mercado de trabalho e, finalmente, para o uso social que, covencionalmente, se possa fazer da escrita. Em segundo lugar, porque prevalece (até mesmo entre os professores!) a idéia de que as simples habilidades de juntar letras e associar palavras garantem, por si só, o acesso aos mais variados usos e possibilidades de expressão, como se a multidimensionalidade e a multifuncionalidade da língua não fossem também alvos de descoberta e processos de construção cognitiva que merecessem a atenção específica e o empenho dos educadores.

     Se o produto da aprendizagem escolar (incluindo suas tendências típicas de incompletude ou fracasso) é, em grande parte, tributário aos princípios e práticas do ensino, estes, por sua vez, merecem ser examinados à luz de valores, mentalidades e paradigmas sociais que, indiscutivelmente, condicionam concepções, prioridades educativas e formas de ser educador. Em outras palavras, na compreensão de nossos problemas (o que não temos, o que nos falta), a abordagem binária “ensino-aprendizagem” é simplista, restritiva e imensamente obscura se não for contemplada pela ótica cultural que lhe dá sentido (ou que, no caso do confronto com o Oriente, possa apresentar-se como um contraponto nos moldes antes mencionados).

2. Linguagem, educação e cultura

     Na tentativa de compreender a relação do ensino da língua materna com a cultura e com valores socialmente estabelecidos, vale a pena lembrar a distinção apontada por Garcia Hoz (1988) entre a “pedagogia visível” e a “educação invisível”, enquanto dimensões mais ou menos explícitas de objetivos, conteúdos e critérios que se incorporam à ação docente, influindo nas suas concepções, meios e resultados. No caso da linguagem, é possível situar o ensino formal da escrita, suas regras e usos previstos, como elemento visível (e previsível) em qualquer programa de ensino escolar. Mas, ao lado do “saber escrever” e do “bem escrever” considerados nas salas de aula, fica implícita uma certa mentalidade – pedagógica e lingüística – que, em cada universo cultural, condiciona, de modo invisível, o como, o porquê, o para quê ou o para quem escrever.

     No campo da educação, o grande divisor de águas entre Ocidente e Oriente parece situar-se na própria concepção de aprendizagem. Na versão mais tipicamente ocidental, prevalece a educação como um subproduto do ensino, isto é, compreendida como conseqüência previsível do acúmulo de saberes. O conhecimento, imprescindível na organização das massas, é tão mais valorizado quanto maior for a quantidade ou a aplicabilidade prática de seu potencial. A alfabetização, por sua vez, faz parte de uma “bagagem cultural mínima”, legítima pela sua dimensão funcional (em ações concretas tais como assinar o nome, preencher formulários, seguir instruções, etc.) e também como meio para o acesso a outras informações.

     De modo inverso, a tradição oriental – sempre, tipicamente falando – privilegia a concepção de ensino como subproduto de um processo maior e mais amplo que é a própria educação. Assim, toda e qualquer aprendizagem – incluindo a da língua materna – é um meio para a formação do homem. Assim o expõe Herrigel, analisado por Gusdorf nas conclusões de seu clássico Professores para quê?:

“O japonês, expõe Herrigel, ‘concebe a arte do arco e flecha não como uma capacidade esportiva, adquirida através de um treinamento físico progressivo, mas como uma força espiritual decorrente de exercícios onde é o espírito que determina a finalidade, de modo que a pontaria do arqueiro vise a si mesmo, pois , se atingir o alvo, ele mesmo é alvejado. Hoje, como antigamente, o manejo do arco continua sendo um combate de vida ou morte, na medida em que é um combate do arqueiro contra si mesmo’. Vemos que não se trata de uma formação esportiva, segundo os parâmetros ocidentais na qual se tentaria preparar um campeão para triunfar nos concursos. O noviço europeu (teria que fazer) essa experiência através das sucessivas desilusões (…) até compreender o sentido profundo dos exercícios que lhe foram impostos. O arco, as flechas, o alvo não são fins, mas apenas meios pelos quais o discípulo deve, pouco a pouco, conquistar as mais elevadas verdades. ‘Os exercícios espirituais suscetíveis de fazer da técnica do manejo do arco uma arte e, eventualmente, uma arte despojada de arte, são exercícios místicos. Ou seja, o que está em causa não é a obtenção de um resultado exterior com arco e flechas, mas a realização de alguma coisa que valha por si mesma”.

     A formação que “vale a pena por si mesmo”, valor ainda preservado no Oriente, é a busca do auto-conhecimento e da auto-disciplina, os quais, tanto pelas habilidades corporais como por intermédio das atividades mentais, visam atingir o plano espiritual, reintegrador da pessoa humana. No Ocidente, a demanda social e a crescente preocupação em medir e controlar o produto do ensino colocaram a ação escolar rumo à especialização, qualidade sempre muito admirada entre os modelos de excelência. Assim, passando por inúmeros especialistas (o matemático que ensina matemática, o historiador que ensina história…), o aluno convive, desde muito cedo, com a fragmentação do saber. E tal é o envolvimento neste processo que, muitas vezes, ele perde a possibilidade de chegar a uma consciência crítica a respeito do conjunto dos conhecimentos humanos, ou mesmo de seus próprios saberes, conformando-se com mecanismos específicos para atender as exigências (eventualmente até contraditórias) de cada disciplina ou de cada professor. Nesse contexto, sua individualidade aparece como um “reduto de resistência pessoal” na negação do que lhe foi sistematicamente oferecido.

     Contribuindo também para o processo de fragmentação da pessoa, há que se considerar a relação professor-aluno nos moldes como se processa o ensino. O ideal da especialização associado ao princípio didático da “transmissão do saber” permite-nos compreender a relação autoritária e monológica que rege a ação educativa na maior parte das escolas ocidentais. O desequilíbrio entre “aquele que detém o conhecimento” – o professor – e “o que tudo ignora” – o aluno – justifica práticas de imposição de saberes que, muitas vezes, desrespeitam e despersonalizam o aprendiz. O conhecimento consagra-se como produto estático, eventualmente sem sentido, conseguido mediante captação passiva ou através de exercícios meramente reprodutivos, ambos motivados por alvos externos ao próprio saber (a nota, o passar de ano…).

     Em oposição, a imagem mais típica do ensino oriental é a do discípulo que colhe do mestre seus atos e palavras como desafios pessoais ou como convites à descoberta e à construção do conhecimento. A motivação intrínseca desses encontros é a chama da curiosidade, permanentemente alimentada pela relação dialógica. Assim, mais importante do que o objeto do ensinamento, os recursos materiais ou físicos que possam eventualmente apoiar o processo de aprendizagem, há o investimento maior na relação entre pessoas, que se educam mutuamente pelo exemplo, pela experiência de compartilhar saberes e pela mística que envolve essa relação.

     Além das concepções educativas, as mentalidades que regem a produção lingüística no Oriente e no Ocidente são igualmente esclarecedoras na compreensão dos usos mais típicos da escrita ocidental. Vale lembrar que o interesse em situar diferenças lingüísticas certamente ultrapassa a mera descrição de aspectos formais com os quais os povos costumam se manifestar. Mais que isso, a expressão humana reflete modos de compreender, de lidar e de se situar perante o mundo.

     Marcada pelo modelo racionalista que privilegia formas de saber objetivas, quantificadas, classificadas e precisas, a linguagem tipicamente ocidental incorpora o padrão de determinação expressiva que pretende apreender o real pela uniformidade dos processos, pela fixidez das tendências e pelo enquadramento à homogeneidade e transparência. É o princípio do “preto no branco” para o qual, uma vez tendo sido registrado no papel, não deve haver margem à dúvida nem à dupla interpretação. O significado está dito e garantido. A digressão aos princípios positivistas do dizer (do pensar, do conceber…) fica por conta das crianças em formulações consideradas infantis e imaturas (que, por esse motivo, confrontam-se com os esforços educativos). Elas podem também ser encontradas entre os poetas, artistas e literatos que, no contexto ocidental, não fazem parte do “mundo produtivo”, do “universo técnico-científico” ou simplesmente dos “homens de negócio”.

     Superando a razão fria que recorta e reduz a realidade e sem a pretensão de dominá-la pelo enquadramento das idéias, o homem oriental se permite conviver com a magia, o incontável, o imagético, o pluriforme, o poético, o encantamento e o afetivo. Assim:

“Em vez de longos e articulados discursos, a língua árabe (o pensamento árabe) expressa-se de modo muito mais natural e autêntico por rápidas sentenças de caráter incisivo, que atingem o íntimo do interlocutor por condensarem séculos (ou milênios…) de uma sabedoria mais do que humana. Os ergo e os ‘demonstrandum’ do Ocidente dão lugar à milenar voz da sabedoria que, por eles, fala. É a verdade das coisas que se deixa ver na ‘trouvaille’ do dito.” (Hanania, 1994, p.49)

     Compactada pela terminologia de denso significado e pelas sentenças nominais(5), a língua oriental é cúmplice da tradição capaz de resgatar a essência perene do ser humano. Este é, por exemplo, o caso dos provérbios árabes, tão indissociáveis da expressão comum, conforme nos explica Lauand:

“Enquanto agentes privilegiados da educação invisível, os provérbios recolhem o saber popular, condensam a experiência sobre a realidade do homem em sua existência quotidiana: as condições de vida, o sensato e o ridículo, as alegrias e as tristezas, as grandezas e as misérias, as realidades e os sonhos, a objetividade e os preconceitos… Mais do que qualquer outra expressão literária, os provérbios têm, freqüentemente, o dom de incidir sobre o núcleo permanente, atemporal da realidade do homem. e daí, também, decorre sua perene atualidade.” (1997, p. 20)

De fato, em uma formulação tipicamente oriental(6) como “Casa de ferreiro, espeto de pau”, observa-se a representação concreta (trazida literalmente pela imagem) que traduz o tradicional reconhecimento coletivo da idéia de que “nem sempre os especialistas apropriam-se da sua habilidade para lidar com suas questões particulares”. A interpretação aproximada deste significado é delegada ao leitor (ou ouvinte) que se apropria da flexibilidade semântica como meio de recuperar/recriar o significado. Tal característica – interpretada pelo ocidental como falta de precisão – permite uma apreensão profunda do dizer na medida em que incorpora a complexidade dos significados (plurissemia).

     Nesse sentido, o “pensamento confundente”(7), mesmo (e justamente porque) convivendo como o mistério e com o poético, permite novos olhares para uma mesma realidade, eventualmente, outras possibilidades de apreensão e de entendimento.

Considerações finais (e certamente não definitivas)

   Ao considerar as tendências ocidentais na produção da língua escrita e sobretudo as suas dimensões de fracasso ou de dificuldade, não se pode negar o papel da escola, dos recursos didáticos e da metodologia em sala de aula. Mas o processo de conhecimento não se explica pela relação binária “ensino-aprendizagem”, entendida como um mecanismo de causa e efeito, isto é, como “um toma lá da cá” pedagógico. Trata-se, evidentemente, de um processo muito mais amplo de vivenciar e construir, no conjunto das experiências vividas, esquemas de ação e de compreensão que fazem sentido pela mentalidade ou pelo referencial de valores nos quais foram conquistadas. Em outras palavras, não aprendemos só porque fomos ensinados, mas também pelo que somos (pensamos, valorizamos, concebemos, buscamos…). Em uma dimensão pouco visível, também as relações ensino-aprendizagem e professor-aluno são igualmente dependentes de mentalidades e de “patterns of behavior” culturalmente estabelecidos.

     À luz das concepções de ensino pouco comprometidas com um projeto educativo, da relação unilateral entre mestre e discípulo, da valorização da linguagem informativa (racional, objetiva e precisa) em detrimento de outros modos de expressão, e, finalmente, da fragmentação do conhecimento e da formação do ser humano podemos melhor situar as tendências ocidentais na produção da língua escrita. Pela dimensão “visível” da pedagogia, constatamos a presença de uma escola que efetivamente ensina a ler e a escrever; pela dimensão “invisível”, pode-se supor um longo e penoso processo de enquadramento lingüístico que muitas vezes restringe possibilidades de expressão, roubando a vontade e o direito de dizer.

     Na busca de alternativas educativas, os métodos de ensino, os recursos didáticos e as cartilhas podem ser revistos, renovados, corrigidos e até eventualmente substituídos, mas as mentalidades que os sustentam resistem teimosamente, assim como a atitude daqueles que discriminam os diferentes universos culturais, em posturas etnocêntricas, esquivando-se do saber, do diálogo, da convivência democrática e também da compreensão de si mesmo.

     Um convite ao diálogo com o Oriente!


Referências Bibliográficas

COLELLO, Silvia Redação Infantil: Tendências e Possibilidades, Tese de Doutorado apresentada à Fac. de Educação da USP, São Paulo, 1997.

GARCIA, HOZ, Victor Pedagogia Visível – Educação Invisível, São Paulo, Nerman, 1988.

GERALDI, João Wanderley (org) O Texto na sala de Aula – Leitura e Produção, Cascavel, Assoeste, 1984.

GERALDI, João Wanderley Portos de Passagem, São Paulo, Martins Fontes, 1993.

GUSDORF, Georges “Professores para Que?” Para uma Pedagogia da Pedagogia, São Paulo, Martins Fontes.

HANANIA, Aida Oriente e Ocidente: Sentenças de Sabedoria dos Antigos, São Paulo, DLO-FFLCHUSP/EDIX, 1994.

HANANIA, Aida e LAUAND, Jean Oriente e Ocidente: Lingua e Mentalidade, São Paulo, Centro de Estudos Árabes FFLCH-USP/Apel, 1993.

LAUAND, Jean Provérbios e Educação Moral, São Paulo, Hottopos, 1997.

LEMOS, Claudia “Algumas Estratégias”, Cadernos de Pesquisa, n. 23, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, Dez/1997.

PÉCORA, Alcir Problemas de Redação, São Paulo, Martins Fontes, 1992.


1. Para o escopo deste artigo, referimo-nos ao Oriente em geral sem discernir matizes. Em todo caso, as duas instâncias concretas com que lidamos procedem do Extremo e do Próximo Oriente.

2. Utilizam-se as expressões “escrita do dizer” e “escrita do transformar”, buscando justamente distinguir diferentes níveis do domínio lingüístico que se traduzem em possibilidades mais ou menos qualitativas de expressão.

3. Restrição lingüística não no sentido de “empobrecimento da linguagem” (o que não se justifica do ponto de vista da Sociolingüística), mas no que diz respeito à possibilidade de intercâmbios entre os diferentes grupos, isto é, a efetiva “inter-comunicação”.

4. A esse respeito, veja Pécora (1992), Geraldi (1984 e 1993), Lemos (1977) e Rocco (1981).

5. A esse respeito, veja-se Lauand (1997) e Lauand e Hanania (1993).

6. No sentido que lhe dá Lauand (1997), cap. I.

7. No sentido técnico que a expressão tem em Ortega y Gasset.