Casos recorrentes de violência, ansiedade, apatia e outros transtornos entre estudantes no retorno às aulas presenciais requerem acolhimento e ações por parte das escolas e demais setores.
TEXTO Por: stephanie kim abe
No começo de abril deste ano, a Escola de Referência em Ensino Médio (Erem) Ageu Magalhães, no Recife (PE), esteve em destaque na mídia por conta do episódio em que 26 estudantes tiveram que ser socorridos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) devido a crises de ansiedade na última semana de provas.
Pouco mais de um mês depois, outro caso parecido aconteceu na Erem Professor Mardônio de Andrade Lima Coelho, na Bomba do Hemetério, zona norte da capital pernambucana. Mais de 20 estudantes tiveram crise de ansiedade, com falta de ar e crises de choro, e também tiveram que ser atendidos pelo Samu.
Infelizmente, esses relatos e episódios, que indicam questões de saúde mental entre estudantes, não ocorrem apenas nas escolas da rede recifense. Em São Paulo, dois em cada três estudantes do Fundamental II e 3o ano do ensino médio relataram sintomas de depressão e ansiedade em um mapeamento realizado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e pelo Instituto Ayrton Senna.
Além disso, a Secretaria contabilizou 4.021 casos de agressão física nas escolas estaduais paulistas apenas nos dois primeiros meses de aula de 2022 – 48,5% a mais que no mesmo período de 2019, quando ainda estavam em aulas presenciais antes da pandemia.
Para especialistas e organizações nacionais e internacionais, o aumento e a recorrência desses casos são consequências do isolamento social e o ensino remoto – que, em grande parte do país, ocorreu de forma precária, sem garantir um vínculo entre estudantes e a escola – que vigoraram nos últimos dois anos por conta da pandemia.
A professora Dra. Silvia M. Gasparian Colello, da Universidade de São Paulo (USP), que trabalha com psicologia da educação, relata:
Muitas escolas estão reclamando também que as crianças voltaram com falta de limites. Outras perceberam estudantes mais apáticas(os). Ou seja, o impacto desse período de isolamento social nas crianças e nos adolescentes tem se manifestado de diferentes formas: problemas de sono, transtornos alimentares, crises de ansiedade, apatia, depressão, agressividade etc. Como esses sintomas são difusos, é difícil ter ideia do quanto, de fato, as crianças e jovens foram afetadas(os). Por isso acho que esse problema está subnotificado.”
Silvia Colello
Isolamento, desenvolvimento, saúde mental e aprendizagem
É direito de toda criança, adolescente e jovem frequentar a escola, onde devem ser garantidas condições para cada um(a) se desenvolver em suas múltiplas dimensões: física, intelectual, social, emocional e simbólica. Ainda que os benefícios que esse espaço traz para sua formação sejam bem conhecidos pela população no geral, com a pandemia ficou mais evidente o quanto as crianças sofreram ao estarem limitadas por dois anos apenas ao lar como espaço de convívio.
“As crianças são movidas pelo interesse em conhecer o mundo e o espaço ao seu redor. Em torno dos 2,5 a 3 anos, o ambiente doméstico começa a ficar pequeno para elas. Elas precisam da escola como um espaço de convivência com outras crianças, de socialização, de estímulos, de desafios, de trocas, de aprendizagem. É como um rito de passagem”, diz Silvia.
Mais do que isso, é no espaço escolar que as crianças e as(os) adolescentes também desenvolvem sua identidade, sua capacidade de questionamento, de problematização do mundo. E, para que a aprendizagem de fato ocorra, elas(es) precisam estar dispostas(os) e em sintonia com a escola e as pessoas com quem convivem nesse ambiente.
A aprendizagem não é um processo passivo de uma criança que senta e escuta o professor passar o conteúdo. Ela pressupõe uma disponibilização, ou seja, o sujeito se abrir para tal – seja pela curiosidade, pelo interesse, pela vontade de aprender. É por isso que as escolas têm que acolher e encontrar estratégias para trabalhar os conteúdos de modo significativo nesse retorno presencial, já que os vínculos foram cortados e os sujeitos precisam se abrir de novo para a aprendizagem.”
Silvia Colello
Os problemas relacionados à saúde mental, intensificados neste momento, também atingem fortemente adolescentes e jovens, afetando inclusive sua relação com a educação. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a taxa de abandono escolar no ensino médio na rede pública, de 2020 para 2021, mais do que dobrou, saltando de 2,3% para 5%. Os dados integram a segunda etapa do Censo Escolar da Educação Básica, divulgada em maio deste ano.
Em outubro de 2021, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) divulgou o estudo A situação mundial da infância 2021 – Na minha mente: promover, proteger e cuidar da saúde mental das crianças, que alerta para a questão da saúde mental na população jovem de todo o mundo, tanto durante a pandemia quanto pré-pandemia.
De acordo com o relatório, mais de 1 em cada 7 adolescentes de 10 a 19 anos vive com um distúrbio mental diagnosticado. Além disso, o suicídio é uma das principais causas de morte para esse grupo etário – quase 46 mil adolescentes morrem dessa maneira por ano.
Segundo a pesquisa, que teve a participação de 21 países, entre eles o Brasil, 22% das(os) adolescentes e jovens brasileiras(os) de 15 a 24 anos disseram se sentir muitas vezes deprimidas(os) ou com pouco interesse em fazer coisas.
Reconhecimento afetivo
Muito se fala em acolhimento, mas, de acordo com as especialistas entrevistadas, esse acolhimento vai além de uma simples roda de conversa no começo de cada período escolar.
É necessário um “reconhecimento afetivo”, como explica Carolina Campos, fundadora e diretora executiva do Vozes da Educação:
No Brasil, nós não fazemos ideia de quantas(os) estudantes perderam os entes responsáveis por elas(es), por exemplo. Nos Estados Unidos, eu tenho um dado de que uma a cada 450 crianças perdeu seu cuidador direto (pai, mãe ou avó) para a Covid. Em Nova York, esse número é de uma a cada 200 crianças. É preciso entender essa e outras situações que afetam o emocional de nossas(os) alunas(os) e, assim, pensar em ações de prevenção e atenção.”
Carolina Campos
Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec, pondera: “Considerando que já estamos em aulas presenciais há pelo menos um semestre, o foco agora é olhar para a sala de aula e para a promoção da saúde mental nesse espaço.”
Nesse sentido, o Cenpec elaborou um roteiro de observação destacando pontos de atenção para que professoras(es) e gestoras(es) reflitam e planejem ações a partir desse levantamento. As perguntas desse roteiro estão organizadas de acordo com os seguintes públicos: estudantes, docentes e gestores(as).
O que a escola pode fazer?
Com base nesse roteiro de observação, professoras(es) e gestoras(es) saberão melhor em que pontos é preciso trabalhar para garantir a devida atenção à saúde mental das(os) estudantes. É importante que esse trabalho seja feito em conjunto por todo o corpo docente e a equipe gestora.
O roteiro pode ser adaptado às diferentes realidades. A partir da observação feita, os achados podem ser discutidos no coletivo, a fim de definir prioridades e pensar em ações e estratégias para toda a escola e para as salas de aula.
Carolina Campos reforça que não é papel das(os) docentes diagnosticar o quadro mental ou o transtorno que as(os) estudantes possam ter. Mas, por seu contato diário com a turma, é natural que identifiquem no comportamento delas(es) sinais de que algo não está bem.
“Sabemos quando um(a) aluno(a) super participativo(a) está mais introspectivo(a) e que, se ele(a) se mantém assim por alguns dias, vale encaminhar para a coordenação ou acionar algum protocolo. O papel da escola é de acompanhamento”, explica Carolina.
Anna Helena Altenfelder concorda:
De fato, fazer um diagnóstico clínico sobre quadro de saúde mental não é atribuição das(os) professoras(es), mas sim de profissionais da saúde com formação específica para tanto. No entanto, a atividade docente envolve uma dimensão cognitiva, social e afetiva. Assim, as(os) professoras(es) podem e devem trabalhar esses aspectos de forma integrada. Conhecer melhor a realidade e o cotidiano das(os) estudantes, dar oportunidade de se expressarem em diferentes linguagens, promover o envolvimento nas diversas atividades, possibilitar atividades de interação entre si, fazer a mediação de conflitos são ações e estratégias integrantes da atividade docente.”
Anna Helena Altenfelder
Nesse sentido, a escola precisa investir mais em reconstruir esse vínculo com as(os) estudantes, que ficou fragilizado durante a pandemia, reforça a professora Silvia Colello. Investir em atividades lúdicas, como jogos e brincadeiras, ou eventos que agreguem todas(os) na escola, como mostra de artes, piquenique, contação de história ou olimpíadas, são algumas de suas sugestões para motivar as(os) estudantes a se sentirem pertencentes à escola novamente. Repensar regras de convivência no espaço escolar junto com as turmas também é uma boa opção.
“O importante é a escola se tornar, neste momento, agradável, significativa e desafiadora para que as(os) estudantes possam se envolver nas atividades e reatar vínculos com as(os) professoras(es) e colegas”, diz Silvia.
Além disso, Silvia acredita que as escolas precisam mudar a perspectiva sob a qual olham as crianças: não tanto focar no que falta (olhar negativo), mas no que elas conquistaram (olhar positivo) – o que poderia ser descoberto por autoavaliações.
“Temos ouvido bastante frases como ‘as crianças não aprenderam nada’, ‘é preciso recuperar as aprendizagens’, ‘vamos aumentar aulas no contraturno para recuperação’. Mas tudo isso, somado a um não reconhecimento do espaço escolar, que mudou nos últimos dois anos, pesa sobre a criança e aumenta a sua ansiedade. Por que não partir do princípio de que o ser humano não para de aprender e que, portanto, ainda que não tenham aprendido a tabuada, elas desenvolveram outras habilidades – como autonomia para tomar banho sozinha, ou conhecimentos sobre esse vírus que causou a pandemia”, defende educadora.
Sem dúvida, em um contexto como o que estamos vivendo é importante falar sobre estratégias de acolhimento, mas também falar do acolhimento no próprio ensino e aprendizagem, pondera a educadora Maria Amabile Mansutti, consultora do Cenpec:
A escola precisa garantir às(aos) estudantes o espaço de protagonismo no aprendizado, colocá-las(os), de fato, no centro do processo de ensino e aprendizagem. Para isso, é preciso fazer mudanças profundas nas práticas pedagógicas e nas relações que acontecem na escola. É preciso investir na autonomia das(os) alunas(os), valorizar que pensem e ajam por conta própria, busquem informações e alternativas, discordem, façam autoavaliação. É preciso ensinar mostrando que o conhecimento é uma construção conjunta entre professoras(es) e estudantes, e destes entre si, a partir das potencialidades cognitivas, físicas, sociais e emocionais de cada um(a).”
Maria Amabile Mansutti
Investimento e políticas públicas
No estudo A situação mundial da infância 2021, a UNICEF faz um apelo para que governos de todos os países se comprometam a realizar ações que promovam a saúde mental de crianças e adolescentes, combatendo o estigma e a falta de financiamento. Entre as medidas propostas, estão a integração e a ampliação de serviços de diferentes setores que lidam com a questão, como saúde, educação e proteção social.
No Brasil, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Saúde Mental nas Escolas (PL nº 3.383/2021), que busca incidir sobre a promoção da saúde mental no ambiente escolar para estudantes, familiares e profissionais de educação.
A ideia é que essa política seja desenvolvida de forma intersetorial, com execução articulada do Programa Saúde na Escola (PSE) e grupos de trabalho que, com as ações no território, vão aproximar os serviços de Saúde e Assistência Social da comunidade escolar.
Para Anna Helena Altenfelder, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece a educação integral como fundamento pedagógico e afirma um compromisso com uma visão de desenvolvimento humano complexa e não linear.
Dessa forma, a BNCC busca ultrapassar visões reducionistas, que privilegiam ou a dimensão intelectual, cognitiva ou a dimensão afetiva. Assim, é preciso pensar a questão da saúde mental na escola de forma integrada. Também é preciso uma visão estrutural e sistêmica, o que significa entender que, para promover a saúde mental na escola, são necessárias políticas estruturantes e ações no cotidiano da sala de aula, articulando diferentes atores, serviços e programas.”
Anna Helena Altenfelder