Alfabetização – A língua como prática de comunicação

Silvia M. Gasparian Colello é autora de vários livros publicados pela Summus Editorial. Neste mês de outubro de 2024, em que estamos abordando o tema educação, Silvia nos concedeu uma entrevista exclusiva sobre alfabetização. Confira a seguir

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Entrevista com Silvia Colello – Especial 50 anos
Summus Editorial

– Em seus livros, ao abordar a temática da alfabetização, você relaciona esse processo de aprendizagem ao contexto do mundo globalizado e tecnológico. Como se explica essa relação?
Quando a língua escrita é concebida como prática de comunicação (e não como simples código, pautado na relação entre letras e sons), o desafio da escola é ensinar a ler e escrever em associação com efetivas práticas sociais de uso da língua, por exemplo: fazer listas de compras, trocar mensagens por e-mail, ler jornais e revistas, fazer relatórios, expressar opiniões, escrever histórias, preparar convites, interpretar regulamentos, navegar em diferentes sites da internet, buscar informações, registrar conhecimentos, mandar e receber notícias. Mais do que compreender o sistema alfabético e assimilar regras ortográficas ou gramaticais, aquele que se alfabetiza constrói competências para relacionar propósitos e gêneros da língua escrita, ajustando-se aos interlocutores com base em suportes e instrumentos disponíveis na nossa sociedade. Como não existe uma língua independente de seus usuários e de seus contextos de vida, a produção e a interpretação da língua são construções específicas em cada situação comunicativa. Longe de ser uma aprendizagem instrumental que, no passado, justificava práticas pedagógicas mecanicistas (como a “cópia pela cópia”, a soletração e a silabação), a alfabetização pressupõe (e ao mesmo tempo implica) uma certa condição do sujeito na relação com o seu mundo.

Partindo do princípio de que cada sociedade, em cada momento histórico, tem suas próprias práticas de comunicação, é possível afirmar que ser alfabetizado hoje é diferente do que era ser alfabetizado em qualquer outra época. No nosso mundo — globalizado e tecnológico — assistimos à emergência de novos modos de lidar com a língua escrita, formas inéditas de consultar, redigir, editar, divulgar, armazenar e enviar dados. Nesse contexto, aprender a ler e escrever é aprender a usar a língua com os recursos do nosso tempo, razão pela qual a alfabetização e a alfabetização digital deveriam ser partes de um mesmo processo.

Assim, o desafio dos educadores é romper com as barreiras que separam a escola da vida e fazer da alfabetização um processo contínuo de aprofundamento de crianças, jovens e adultos na sociedade letrada.

– Em seu livro Crianças na escola… E agora?, você fala sobre a impossibilidade de pressupor, logo no primeiro ano de escolaridade, um “estágio zero” de conhecimentos sobre a língua escrita. Então, quando e como se inicia a alfabetização?
Entendida como um longo processo de aprendizagem, a alfabetização se inicia muito antes de as crianças entrarem na escola. Isso porque, desde que nascem, elas convivem com práticas de leitura e escrita. Ao acompanhar a avó seguindo uma receita culinária para fazer um bolo, ao ouvir uma história, ao ver o pai lendo um jornal, o irmão fazendo lição de casa ou a mãe trabalhando no computador, meninos e meninas, desde muito cedo, vão se perguntando sobre as funções e especificidades da escrita e acabam por tecer hipóteses sobre seu funcionamento. Assim, muitos acabam compreendendo que a escrita representa a linguagem, que ela se vale de caracteres convencionais para expressar ideias e atingir objetivos específicos. Não raro, crianças de quatro ou cinco anos começam a perceber as diferenças entre a oralidade e a escrita ou, ainda, tornam-se capazes de discriminar diferentes gêneros textuais. Por isso, ao entrarem na escola, já trazem consigo inúmeros conhecimentos processados em situação informais de comunicação. Chamamos de “letramento emergente” o conjunto dessas experiências e, mais precisamente, o impacto que elas têm na aprendizagem pré-escolar — uma condição que faz a maior diferença na alfabetização escolar.

Infelizmente, como essas experiências costumam ser desiguais entre diferentes famílias ou camadas sociais, as crianças chegam à escola com diferentes graus de conhecimento, motivação, ritmos de aprendizagem e possibilidades de desempenho, o que nem sempre é compreendido pela escola.

Se admitimos que a alfabetização se inicia antes mesmo da escolaridade, somos também obrigados a concluir que ela não se esgota em um curto período. Embora os dois anos iniciais do ensino fundamental se constituam como ciclo específico de sistematização do ensino da língua escrita, é certo que a alfabetização, como um longo processo de imersão na sociedade letrada, se prolonga por anos a fio.

– Historicamente, nos debates nacionais e internacionais, o mundo assistiu a diferentes propostas de alfabetização. No seu livro Alfabetização — O quê, por quê e como, você defende a postura pedagógica socioconstrutivista em oposição ao método fônico, indicado pelo governo Bolsonaro como principal diretriz para o ensino da língua escrita. Como se explica a diferença entre eles?
O método fônico e o ensino socioconstrutivista se diferenciam nas concepções de língua e de aprendizagem, e consequentemente se diferenciam também nos objetivos e metodologias de ensino.

Entendendo a língua escrita pela estrita relação entre letras e sons (grafemas e fonemas), os adeptos do método fônico postulam um programa de ensino passo a passo, no qual a criança, de modo passivo, vai progressivamente aprendendo a associar letras e sílabas até chegar às palavras e frases. O objetivo é a aquisição do sistema alfabético, o que justifica a progressão de primeiro aprender a língua para, depois, poder fazer uso dela.

Na abordagem socioconstrutivista, a meta é a apropriação da língua pela sua razão de ser, isto é, formar o sujeito efetivamente escritor, leitor, aquele que é capaz de lidar com a escrita nas práticas sociais de comunicação. Para tanto, privilegia, desde o início da alfabetização, os sentidos do ler e escrever, mobilizando a postura ativa e o esforço reflexivo dos alunos. Assim, eles partem de seus conhecimentos prévios sobre a língua para tecer hipóteses, testá-las, confrontar suas ideias com outras escritas, a fim de construir novos conhecimentos e competências de interpretação e de produção textual. A aprendizagem do sistema se faz em função da razão e do desejo de dizer ou compreender o mundo. Em outras palavras, é lendo e escrevendo que a criança aprende a ler e escrever.

– Segundo o Censo 2022, a taxa de analfabetismo no Brasil caiu nos últimos 12 anos. No entanto, não é possível medir com precisão o número de analfabetos funcionais. Em seus livros, você discute a diferença e as relações entre alfabetização e letramento. Como a compreensão desses conceitos nos ajuda a vislumbrar com mais clareza o quadro da sociedade leitora no Brasil?
Por muitos anos, no Brasil, o sujeito alfabetizado era aquele que conhecia o sistema de escrita a ponto de codificar e decodificar as palavras ou escrever o próprio nome. Ao final do século XX, em função de mudanças políticas, econômicas, sociais e tecnológicas, foi ficando claro que não basta saber ler e escrever nesse sentido estrito; é preciso formar verdadeiros usuários da língua escrita, sujeitos capazes de participar das práticas sociais letradas. Os inúmeros estudos sobre o letramento favoreceram a compreensão do problema do analfabetismo funcional: pessoas alfabetizadas, mas pouco letradas, ou seja, sem condições de fazer uso da língua. Por isso, ainda que a curva decrescente do analfabetismo no país seja uma boa notícia, a evidência de que a maioria dos brasileiros, mesmo tendo passado pela escola, não chega a um nível desejável de letramento parece alarmante. Fica aí um forte apelo por políticas educacionais mais favoráveis à superação do analfabetismo e do analfabetismo funcional; fica também um desafio para a revisão de princípios, diretrizes e práticas de ensino nas escolas; e, finalmente, fica uma convocação a todos os professores, para que invistam na formação de sujeitos leitores e escritores.

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